terça-feira, 22 de junho de 2010

Sobre o desapego aos fatos; ou: como não conseguir se livrar do moralismo


Foi numa tarde qualquer. Eu caminhava desinteressado pelas ruas de Niterói, para resolver algum problema corriqueiro, acho, já nem lembro mais. Passava em frente ao antigo Cinema de Icaraí quando vi um velho mendigo nas escadarias, lugar frequentado por eles para escapar do concreto frio e das chuvas indiscriminatórias.
Ele estava deitado sob a marquise - vamos chamar-lhe Mendes, um nome comum para um mendigo qualquer, visto que, à época, não coube-me perguntar-lhe o nome. Ora, meus problemas pareciam tão mais importantes.

Pois bem, o velho Mendes estava deitado no duro concreto marrom, encolhido contra si mesmo; suas pernas vestidas de uma calça cinza surrada e rasgada, envolvida por seus braços nus; a cabeça apoiada em um velho pano de chão, provavelmente cedido por alguma boa moça tocada pela difícil vida do velho Mendes, já usado durante anos para limpar a sujeira da casa, agora servindo de apoio para a sujeira humana. Seus tristes olhos azuis fitavam, sem nunca desviar o olhar, uma velha senhora, aparentando lá seus oitenta anos, brincando com uma garotinha, de uns oito ou nove anos. A menina se jogava no chão, rolava na sujeira, divertia-se com aquilo como provavelmente suas amigas se divertem com bonecas Barbies sem cabeças ou cabelos. A avó a puxava pelo braço, ela ficava em pé, a avó dava-lhe uma pequena bronca, a garota pedia desculpas e tornava a deitar e rolar no chão. A brincadeira parecia não ter fim. E, apesar das broncas, a velha senhora parecia também divertir-se, posto que, entre uma bronca ou outra, sempre deixava escapar uma gargalhada.

Tudo isso eu percebi por alguns segundos, olhando de soslaio, e não dei a menor atenção. Toda esta narrativa é pintada pelas cores enganosas do retrospecto.

Já me distanciava do lugar quando ouvi:

“Ei, cabeludo!”

Era comigo. Com pressa e irritado, olhei em volta.

“É, você cabeludo, vem aqui. Rapidinho.”

Mendes tinha a voz rouca e falhada. Percebi que fazia um enorme esforço para gritar desse jeito.

“O que foi? Olha, estou com um pouco de pressa.”
Mendes, me ignorando e sem levantar a cabeça de seu travesseiro improvisado, falou num tom muito baixo:

“Olha como aquela menina é bonita.”

E com um movimento de cabeça me apontou na direção da senhora brincando com a criança.

“Não vê o brilho? Chega a cegar, o brilho dela. Mais fácil seria olhar pro Sol. Se for pra sua imagem ficar gravada atrás dos meus olhos, espero ser ela a última coisa que verei na vida.” Ele disse isso com os olhos tristes e por eles achei que ia romper um pranto compulsivo.

Se, em algum momento daquele dia, espantei-me com o jeito de poeta do velho Mendes, agora já não recordo. Na hora, só lembro de ter sentido medo. Segui na direção por ele apontada e somente pude reparar no que meus ouvidos ouviram. Esses velhos jornalistas, tão apegados a mania dos fatos, enxergam nada senão a casca, a superfície. Não pude ir além da palavra falada. Menina. Julguei o mendigo um pedófilo potencialmente violento e hoje confesso envergonhado minha banalidade e mesquinhez de espírito.

Eu não disse nada. Não comentei, fiquei em silêncio observando o velho Mendes, sentindo um misto de pena e nojo. Uma menininha, pelo amor de Deus! No entanto, prepotentemente consolei meu espírito quando considerei que ele era só um mendigo, um velho jogado à poeira das ruas, a mercê do vento e outras forças alheia aos esforços humanos, sendo constantemente empurrado de um lado pro outro. Logo, Mendes não teria nenhuma força moral para guiá-lo na direção dos valores mais nobres, visto que estava à margem dela. Assim, de certo modo, eu, com meus poderes de Juiz por mim concedidos, absolvi o velho Mendes de seu crime horrendo.

Todo esse episódio fez-me lembrar de George Orwell, vagando nas ruas de Paris e Londres, como ele próprio diz, “na pior”. Caçando bitucas de cigarro e penhorando roupas velhas, lençois, qualquer coisa por um mísero pedaço de pão. Vagar morinbundo pelas ruas, sem espectativas pro futuro, constitui um sintoma que, em certa medida, torna-se seu próprio analgésico. Avançando um pouco mais em sua reflexão, posso dizer também que, com o estômago vazio torturando cada milésimo de segundo da sua vida (“da dor física só se pode desejar uma coisa: que pare”), barreiras morais, sociais, sentimentos, tudo isso torna-se tanto um luxo quanto o seria um doce, um carro ou uma casa.

Voltando ao velho Mendes, concordei que a garotinha era realmente bonita e retomei meu caminho. E foi somente naquele momento que percebi. A menina pôs-se a correr, distanciando-se da avó para abraçar seu pai, que a esperava de braços abertos do outro lado da rua. E eu, acreditando que o velho Mendes ia acompanhá-la com olhos hipnóticos, tornei a observá-lo. E foi ali. Tudo me veio num súbito, uma onda, uma avalanche, todas as minhas impressões, julgamentos, preconceitos, opinões, tudo atingiu-me em cheio, e juro que me vi estirado no chão da moralidade, fitando o horizonte da mente que se expande não naturalmente, com tempo, estudo e leitura, mas sim com força e brutalidade de uma arrancada brusca. O velho Mendes não mudara a direção do seu olhar. Continuava observando o mesmo lugar, e por um momento pensei que fosse por falta de forças para mover o corpo. Mas, seguindo a direção de seu olhar, vi que o ele observava, o que ele havia observado desde o começo, e não era a menininha.

Mas não cabe aqui descrever o que de fato ele estivera fitando todo este tempo. Acredito que o motivo de seu discurso poético está perdido em algum lugar desta pobre narrativa, e cabe ao leitor encontrá-la; seria um erro, como rudemente apontar com o dedo um ponto específico de um quadro, como se este ponto justificasse toda a obra, e eliminasse a fruição do quadro como um todo. Ou como explicar racionalmente uma piada.

***

O que o fez utilizar a palavra menina, aí já não cabe a mim descobrir. Minha mente ainda dói do brusco crescimento e expansão, as coisas ainda estão um pouco difusas, menina, senhora, idade, brilho, amor, mendigo, sentimento, vazio, tudo se confunde um pouco e distinguir esses sentimentos uns dos outros mostra-se muito difícil para esses velhos jornalistas, sempre tão apegados a mania dos fatos.

2 comentários:

Carol Oliveira Castro disse...

É lindo quando vc acha a poesia no cotidiano... parabéns...

Bob disse...

Excelente texto....
Nos fazemos juizes a todo instante...ERRO BIZARRO...

Um dia ouvi de alguém que "ao julgar, estamos automaticamente nos julgando"
VERDADE!
Quantas vezes não reprovamos uma atitude de alguém e mais a frente fazemos o mesmo?

Nossos olhos são feitos para olhar a penas e com o auxilio da mente, não julgar, mas refletir...
Esse é o don dado a nós animais racionais: REFLETIR!